A
Bíblia e o “Mundo”
Gary DeMar
Tradução: Felipe
Sabino de Araújo Neto1
Embora o uso da palavra “mundo” pela Bíblia tenha vários
significados específicos, na maioria
dos casos ele difere um pouco da forma como costumamos usar a palavra em nossa
conversação e escrita diária: uma Major
League “Série Mundial” é uma competição de esportes que pode incluir times
de baseball de apenas dois países (Estados Unidos e Canadá);2 o show de televisão
“O Mundo de Dave” é sobre a vida limitada
do comediante Dave Barry; estar “no topo do mundo” não tem nada a ver com subir
até o pico do Monte Everest; a música de Jiminy Cricket sobre ser “um pequeno
mundo, afinal de contas” não é uma
descrição das dimensões planetárias; e afirmar que o “amor faz o mundo girar” dificilmente é uma lei de física estabelecida. Poucas
pessoas experimentam problemas ao entender esses usos variados da palavra
“mundo” no discurso ordinário, pois
elas entendem o contexto no qual a
palavra é usada. O mesmo é verdade para a forma como a Bíblia usa “mundo”.
Contextos diferentes podem mudar o significado de uma palavra. É tarefa do intérprete prestar muita atenção ao tema
para entender o significado que o autor tem em mente quando usa “mundo”. Em
João 1:10, “mundo” está sendo usado de três maneiras diferentes com nenhuma confusão.
O Mundo como Criação Física de Deus
O primeiro ato criativo de Deus foi
a criação do cosmos, o mundo físico:
“No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn. 1:1). Qual foi a opinião de
Deus sobre a sua obra?: “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era
muito bom” (1:31). A partir do Novo Testamento, não somente sabemos que “o
mundo foi feito por ele”, mas que
Jesus “estava no mundo” (João 1:10; cf. Hb. 1:2-3; Cl. 1:16). A
ordem criada é um feito de Deus, e desempenha um papel significativo no plano providencial de Deus:
Cristo foi
escolhido “antes da fundação do mundo”
(1 Pedro 1:20), e Hebreus fala do que Cristo disse quando “veio ao mundo” (Hb.
10:5). Paulo diz que existem “muitos
idiomas diferentes no mundo” (1 Coríntios 14:10). O significado é claro: a
referência é ao nosso habitat físico, a terra.3
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2 O Little
League inclui mais de 100 países de todo o mundo. O time vencedor na
América joga com o vencedor da competição internacional.
3 David F. Wells, God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams (Grande
Rapids, MI: Eerdmans, 1994), 37.
Em seu discurso aos filósofos atenienses, Paulo descreveu a crença
comum de que Deus “fez o mundo e tudo o que nele há” (Atos 17:24). Seu ponto de
partida foi que existia um Deus particular, o Deus único e verdadeiro, que
criou o cosmos (17:31) e poderia salvá-los dos seus pecados.
A palavra grega kosmos
(“mundo”), a partir da qual derivamos as palavras portuguesas cosmos,
cósmico, cosmopolitano, microcosmo, e cosmologia,4 pode designar a ordem criada
inteira (Mt. 13:35; 24:21; Lucas 11:50; João 17:5,24), a terra em particular
(Mt. 4:8; Marcos 14:9; Lucas 12:20; João 11:9), um grande grupo (João 12:19),
um sistema político/social/religioso (Ap. 11:15), um sistema mundial
conflitante (1 João 5:19), e, como veremos, o domínio particular da obra
redentora de Deus.
O Mundo como o Objeto da Graça Redentora de Deus
Um dos versículos mais amados na Bíblia
é “Porque Deus amou o mundo de tal
maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna” (João 3:16; cf. 2 Coríntios
5:19). Entendendo o contexto redentor de João,
o uso de “mundo” é melhor entendido como ensinando que o amor de Jesus não tem
limitações nacionais, raciais ou geográficas, e que ele não é restrito a um
grupo de pessoas. Os samaritanos, que
como um grupo foram banidos pelos
judeus, foram abraçados por Jesus. Ao ouvir a mensagem redentora de Jesus, eles
disseram o seguinte à mulher samaritana que tinha encontrado Jesus primeiro
junto ao poço: “Já não é pelo teu
dito que nós cremos; porque nós mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é
verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo” (João 4:42). O “evangelho
eterno” deve ser pregado “aos que
habitam sobre a terra, e a toda a nação, e tribo, e língua, e povo” (Apocalipse
14:6), isto é, ao mundo.
Antes do Pentecoste, o evangelho foi quase
exclusivamente uma mensagem somente aos israelitas, com algumas exceções
(Mateus 10:5; 15:21-28). Uma família não-israelita poderia ser incorporada a
Israel pela fé (e.g., a família de Raabe: Josué 2:8-14; cf. Mateus 1:5). Sob o
Novo Pacto, não existe nem judeu nem gentio (Gálatas 3:28), pois a parede de
divisão que separava os dois mundos – o mundo judeu e o gentio – foi
desmoronada pela obra redentora de Cristo (Ef. 2:11-22). Jesus é agora o
“Salvador do mundo”.
O amor redentor de Jesus se estende
aos judeus (Mt. 15:24), cananeus (15:22), samaritanos (João 4:42) e gentios em
geral (Mt. 12:18,21; Lucas 2:32; Atos 9:15; 10:45; 11:1,18). Jesus “devia
morrer pela
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4 Bob
Moore e Maxime Morre, Dictionary of Latin
and Greek Origins: A Comprehensive Guide to the Classical Origins of English
Worlds (New York: Barnes & Noble Books, [1997] 2000), 115-116.
nação. E não somente pela nação, mas também para reunir em um corpo
os filhos de Deus que andavam dispersos” (João 11:51-52; 10:16). Essa era uma
idéia nova para os judeus do primeiro século. Até mesmo Pedro teve que ser
convencido por Deus de que os não-judeus (o mundo como distinto de Israel)
também compartilhariam das bênçãos do pacto por meio da cruz de Cristo (Atos 10
– 11:1-18; 15:1-29; Gl. 2:11-14). Esse é o porquê Pedro pôde dizer: “Reconheço
por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; Mas que lhe é agradável aquele
que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo” (Atos 10:34, 35).
O Mundo como se Referindo a Todos Sem Distinção
Os fariseus
estavam preocupados o suficiente com o impacto de Jesus sobre os corações e
mentes daqueles que viviam em Israel, especialmente na cidade capital de Jerusalém; assim, eles lançaram essa advertência frenética: “Eis aí vai o
mundo após ele” (João 12:19; cf.
7:4; 14:22; 16:21; 18:20). Obviamente, o mundo nesse contexto significa um
grande grupo de pessoas e não milhões de pessoas de todo o planeta. Não todo
mundo sem exceção, mas todo mundo sem distinção na terra de Israel; jovens e velhos, homens e mulheres e judeus e
gentios (12:20). A palavra “todos” é usada numa forma similar por toda a Bíblia (e.g, Mateus 3:5;
4:23-24). “Por exemplo, Marcos 11:32 nos diz que ‘todos sustentavam que João
verdadeiramente era profeta’, mas, obviamente, somente pessoas que estavam
cientes do que estava acontecendo poderiam estar incluídas nessa menção. Em
João 8:2 somos informados que ‘todo o povo vinha ter com ele’, mas sabemos que
os fariseus não. Em ambos os casos seria mais apropriado dizer ‘todos os tipos
de pessoas.’”5 Costumamos usar
“todos” de uma maneira similar hoje.
O Mundo como um Sistema Político
O avanço do evangelho por todo o Império Romano causou alarme
suficiente, a ponto de alguns afirmarem que os discípulos de Jesus tinham
“alvoroçado o mundo” (Atos 17:6). Embora uma palavra diferente seja usada para
“mundo” (oikoumene), o significado é
similar ao kosmos em aplicação. Nos
dias da igreja primitiva, a ideologia Romana, bem como a sua força militar e
comércio dominavam o mundo mediterrâneo. A terra habitada, no que diz
respeito às referências feitas pelos escritores do Novo Testamento, era
um mundo político e religioso governado pelo Império Romano (Mateus 24:14;
Lucas 2:1). Os efeitos da obra redentora de Jesus tiveram um impacto sobre aqueles que se opunham ao evangelho. Esses oponentes
entenderam que uma fidelidade para com
Jesus significaria que o rei divino deles, César,
não mais poderia reivindicar o título de Dominus
et Deus, “senhor e deus”. A ameaça do senhorio de Jesus ao reino político prevalecente de Roma levou Jason e seus associados a serem acusados
de atividades anti-reino (Roma): “Todos
estes procedem contra os decretos de
César, dizendo
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5 Arthur
C. Custance, The Sovereignty of Grace (Grand
Rapids; MI: Baker Book House, 1979), 163.
que há outro rei, Jesus” (Atos 17:7). O uso de “mundo” nesse
contexto significa o mundo da Roma pagã dominada por toda a sua decadência,
incluindo sua tolerância para com práticas ocultas (8:9-11; 13:6-12; cf. 19:19)
e adoração de governadores (12:20-24).
O Mundo como Antítese
Como pode ser verdade que
“a amizade do mundo é inimizade contra Deus?” (Tiago 4:4), quando sabemos que
“Deus amou o mundo de tal maneira”
(João 3:16)? Se “mundo” recebe o mesmo significado em todo contexto no qual aparece, então teríamos uma
contradição. O “mundo” que Tiago está descrevendo é o mundo de incredulidade,
não o mundo como um lugar, uma esfera
de influência, ou o reino da redenção. O uso de kosmos, como Tiago descreve, é “uma disposição e poder
alastrado na humanidade em direção ao mal, em oposição a Deus.”6 A Bíblia usa kosmos para caracterizar o que homens e
mulheres pecadores têm feito com o seu mundo e mostrar sua antítese em relação
ao mundo ideal de Deus e sua ordem
moral (1Co. 11:32; Ef. 2:2; 1Jo. 2:15-17).
O mundo está no
pecado e, portanto, precisa ser salvo (João 1:20; 3:17; 4:42; 12:47; 16:8). O mundo é o lugar de trevas, eticamente falando, no
qual a luz (o Filho santo de Deus, Jesus Cristo) brilhou (João 3:19; 8:12; 9:5;
12:46). O mundo está espiritualmente
morto e, assim, precisa de vida
(João 6:33, 51); isso demonstra
claramente que “mundo” não pode ser tomado
num sentido natural, pois o mundo (entendido descritivamente como a ordem
criada) está animado e vivo.7
A Escritura ensina claramente que os cristãos devem estar no mundo (geograficamente), mas não ser do mundo (moralmente) (João 15:19;
17:14-15, 16, 18; 1 João 2:15). Se o mundo como um lugar deve ser rejeitado,
então Deus violou sua própria proibição ao enviar seu Filho ao mundo, quando
tomou a carne humana e deixou seu novo corpo formado de crentes aqui para
realizarem sua missão em seu nome. Deus não nos chama a escapar do mundo como
um lugar, mas a evitar a mundaneidade como um sistema de crença e fidelidade.
Paulo escreveu aos coríntios: “não vos associeis com os impuros” (1Co. 5:9).
Alguns tomam isso como significando uma completa separação do mundo. Mas isso
não é o que Paulo tinha em mente, “pois, neste caso, teríeis de sair do mundo”.
(1Co. 5:10). Os cristãos devem permanecer no mundo, enquanto aqueles assim
chamados cristãos que praticam a imoralidade devem ser removidos da comunhão
(1Co. 5:13).
Fonte: Myths,
Lies & Half Truths,
Gary DeMar, p.
8-13.
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6 B.
C. Johanson, “The Definition of ‘Pure Religion’ in James 1:27 Reconsidered,” Expository Times 84 (1973), 118-19.
Citado em Peter Davids, Commentary on
James, New Internacional Greek Testament Commentary (Grand Rapids; MI:
Eerdmans, 1982), 103.
7 Greg L. Bahnsen, “The Person, Work and
Present Status of Satan,” The Journal of
Christian Reconstruction, Symposium on Satanism, ed. Gary North 1:2 (Winter
1974), 23-24.
Via: Monergismo
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