Como
os calvinistas explicam Hebreus 4:4-6?
“É
impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom
celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível
outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão
crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia. Porque a
terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz erva útil
para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas,
se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu
fim é ser queimada” (Hb
6.4–8)
O texto da carta aos Hebreus
destacado acima é um dos mais difíceis das Escrituras. No passado o mesmo foi
utilizado por grupos hereges chamados de donatistas e novacianos, os quais apelavam
a ele para negar que os que uma vez negaram a fé pudessem ser readmitidos à
comunhão da igreja. Diante da dificuldade de oferecer uma resposta apropriada
aos hereges, muitos chegaram a questionar a canonicidade da carta.
E sobre o texto já se debruçaram
estudiosos da envergadura de Calvino, Lutero, Mathew Henry, Tertuliano e um sem
número de eruditos. Embora alguns deles tenham defendido a sua interpretação
como sendo a correta, os mais prudentes não só reconheceram a dificuldade, como
evitaram ser dogmáticos e conformaram-se em esperar a volta do Senhor para
afirmar uma certeza sobre o que o autor ensina. É óbvio que escrevendo depois
de homens com tal envergadura, nem sonho dizer qual estava certo, menos ainda
apresentar uma interpretação inédita e melhor que a deles. Limito-me a fazer um
apanhado das principais possibilidades.
O desafio arminiano.
Quando um arminiano apresenta essa passagem como um desafio a um calvinista, em
geral está defendendo a possibilidade de perda da salvação. Identificam os que
foram “iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram
participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes
do mundo vindouro” como crentes regenerados e o fato de que “caíram” significando
que perderam a salvação. Não é uma interpretação livre de problemas, pois
implica que “é impossível outra vez renová-los para arrependimento”, ou seja,
tais pessoas não podem ser trazidas de volta à salvação. E levanta a questão de
qual pecado configuraria essa queda? O escritor diz que “se pecarmos
voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não
resta mais sacrifício pelos pecados” (Hb 10.26, ACF). Quem de nós já
não cometeu tal pecado? Sugere-se que se trata de apostasia, mas a palavra
apostasia não ocorre no texto em estudo.
As respostas calvinistas
concentram-se principalmente em negar que o autor da carta esteja se referindo
a verdadeiros crentes ou que a queda implique real perda da salvação, podendo
tratar-se de um caso hipotético ou uma outra consequência real, que não a
perdição eterna. Nenhuma delas é livre de dificuldades.
1. Não eram
regenerados. Vários calvinistas e alguns
arminianos não identificam as pessoas descritas como sendo crentes regenerados,
mas falsos professantes, que estiveram perto de se converterem. Para eles
“iluminados” refere-se compreender a mensagem do evangelho, “provaram”
significam que apenas degustaram e o “participantes” que usufruíram de um graça
comum, não necessariamente salvífica. Em geral, entendem o “caíram” como sendo
apostasia total e definitiva. Sendo assim, foi do conhecimento da verdade que
essas pessoas caíram, não da possessão pessoal dela, saíram de uma participação
relativa do Espírito Santo, não da participação da natureza divina. Por
rejeitarem o evangelho que compreenderam, chegaram a um tal endurecimento que
se pode dizer que “é impossível outra vez renová-los para arrependimento”.
2. A queda é
hipotética. Essa posição encontra
representantes entre muitos calvinistas e alguns arminianos. Para esses
intérpretes, o texto descreve crentes regenerados e uma apostasia final e
irreversível. Porém, trata-se de uma situação hipotética, o que poderia, em
tese, acontecer se um verdadeiro crente se apostatasse total e finalmente da
fé. Se fosse possível um verdadeiro crente perder a salvação, então seria
impossível para ele recuperá-la. Os que defendem essa posição o apoiam-se no
fato de que o escritor não usa os pronome “nós” ou “vós” ao descrever a queda
dos iluminados, como o faz nas porções anteriores e posteriores de sua mensagem
(Hb 6:9).
3. A queda não é a
perda da salvação. Finalmente, uma outra posição
afirma que o texto descreve verdadeiros crentes, porém a queda não significa
perda da salvação. A perda seria no progresso espiritual ou dos galardões.
Seguindo o raciocínio de Hb 6:1-3, o autor estaria tratando do progresso na fé.
Assim, o ser iluminado refere-se ao batismo, provar o dom espiritual é
participar da ceia, participar do Espírito Santo é ser batizado com o mesmo e
provar os poderes do mundo vindouro é receber/realizar os sinais que acompanham
os que creem. Se após tudo isso a pessoa cai, vale dizer, deixa de progredir, é
impossível voltar no início e recomeçar com o arrependimento, pois seria como
crucificar de novo o Salvador. Por isso o autor espera de seus leitores coisas
melhores, ou seja, o contínuo progresso na fé. Uma versão dessa explicação faz
referência à perda dos frutos e dos galardões, representada pela terra queimada
em Hb 6:8, onde o que de fato é queimado é o que a terra produziu.
Minha posição.
O que eu creio é que Hebreus 6:4-6 deve ser lido e interpretado à luz do ensino
do Novo Testamento sobre a segurança eterna dos crentes. Parafraseando C. I.
Scofield, o “se” de Hb 6:6 não pode anular o “em
verdade” de Jo 5:24. E não é o caso de contrapor um verso a outro, e sim
de iluminar um texto particular com o ensino geral das Escrituras.
Jesus disse “em verdade, em
verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a
vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo
5.24). Disse também que “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e
ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10.28). Paulo afirma que “agora,
pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm
8.1), que fomos “selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o
penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua
glória” (Ef 1.13–14) e que sendo assim “quem os condenará? É
Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de
Deus e também intercede por nós” (Rm 8.34). Pedro completa que
somos “guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação
preparada para revelar-se no último tempo” (1Pe 1.5). As passagens
bíblicas que asseguram a preservação do salvo são tantas que citar todas aqui
alongaria demais esse parágrafo.
Portanto, à luz dessas passagens e
muitas outras é impossível que alguém que foi eleito, predestinado, chamado e
justificado se apostate total e finalmente e perca a salvação, não sendo
glorificado (Rm 8:28-30). Como a Escritura não se contradiz, Hebreus 6:4-6 não
pode estar ensinando que um regenerado pode perder a salvação. Restam três
possibilidades: as pessoas referidas não eram crentes verdadeiros, o que se
perde não é a salvação ou é uma situação hipotética. Eu não poderia afirmar com
certeza qual delas é a correta (inclino-me mais para a da“queda hipotética”),
mas isso não é necessário, pois sei o que o texto não ensina: a perda da
salvação. O texto simplesmente não afirma que um crente pode, de fato, a perder
a salvação e interpretar dessa forma força ceder a um erro parecido com os de
Donato e Novaciano.
Postado por Cristianismo Puro&Simples
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