A PREDESTINAÇÃO
(Cinco afirmações
incontestáveis)
Rev. John Stott
“A
predestinação para a vida é o eterno propósito de Deus, pelo qual (antes de
lançados os fundamentos do mundo) tem constantemente decretado por seu
conselho, a nós oculto, livrar da maldição e condenação os que elegeu em Cristo
dentre o gênero humano, e conduzi-los por Cristo à salvação eterna, como vasos
feitos para honra. Por isso os que se acham dotados de um tão excelente
benefício de Deus, são chamados segundo o propósito de Deus, por seu Espírito
operando em tempo devido; pela graça obedecem à vocação; são justificados
gratuitamente; são feitos filhos de Deus por adoção; são criados conforme à
imagem de seu Unigênito Filho Jesus Cristo; vivem religiosamente em boas obras,
e, enfim, chegam, pela misericórdia de Deus, à felicidade eterna”. (XVII
Artigo de Religião – Predestinação e Eleição).
“Sabemos
que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram
chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que
ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, também
chamou, também justificou; aos que justificou também glorificou”. (Paulo aos
Romanos.8:28-30).
Nestes dois versículos Paulo esclarece o que quis dizer no versículo 28 ao
referir-se ao “propósito” de Deus, segundo o qual ele nos chamou e age para que
tudo contribua para o nosso bem. Ele analisa o “bem” segundo os parâmetros de
Deus, bem como o seu propósito de salvação, através de cinco estágios, desde
que a idéia surgiu em sua mente até a consumação do seu plano na glória
vindoura. Segundo o apóstolo, esses estágios são: presciência, predestinação,
chamado, justificação e glorificação.
Primeiro há uma
referência a aqueles que Deus de antemão
conheceu. Essa alusão a “conhecer de antemão”, isto é, saber de alguma
coisa antes que ela aconteça, tem levado muitos comentaristas, tanto antigos
como contemporâneos, a concluir que Deus prevê quem irá crer e que essa
presciência seria a base para a predestinação. Mas isso não pode estar certo,
pelo menos por duas razões. A primeira é que neste sentido Deus conhece todo
mundo e todas as coisas de antemão, ao passo que Paulo está se referindo a um
grupo específico. Segundo, se Deus predestina as pessoas porque elas haverão de
crer, então a salvação depende de seus próprios méritos e não da misericórdia
divina; Paulo, no entanto, coloca toda a sua ênfase na livre iniciativa da
graça de Deus.
Assim, outros
comentaristas nos fazem lembrar que no hebraico o verbo “conhecer” expressa
muito mais do que mera cognição intelectual; ele denota um relacionamento
pessoal de cuidado e afeição. Portanto, se Deus “conhece” as pessoas, ele sabe
o que passa com elas; e quando se diz que ele “conhecia” os filhos de Israel no
deserto, isto significa que ele cuidava e se preocupava com eles. Na verdade
Israel foi o único povo dentre todas as famílias da terra a quem Javé
“conheceu”, ou seja, amou, escolheu e estabeleceu com ele uma aliança. O
significado de “presciência” no Novo Testamento é similar. “Deus não rejeitou o
seu povo [Israel], o qual de antemão conheceu”, isto é, a quem ele amou e
escolheu (11:2). À luz deste uso bíblico John Murray escreve: “’Conhecer’... É
usado em um sentido praticamente sinônimo de ‘amar’... Portanto, ‘aqueles que
ele conheceu de antemão’... é virtualmente equivalente a ‘aqueles que ele amou
de antemão”. Presciência é “amor peculiar e soberano”. Isto se encaixa com a
grande declaração de Moisés: “Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu,
porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo... mas porque o Senhor vos
amava...”. A única fonte de eleição e predestinação divina é o amor divino.
Segundo, aqueles que [Deus] de antemão conheceu, ou que amou de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos(29). O verbo predestinou é uma tradução de proorizõ que significa “decidiu de
antemão” (BAGD), como se vê em Atos.4:28 (“Fizeram o que o teu poder e tua
vontade haviam decidido de antemão que acontecesse”). É, pois, evidente que o
processo de tornar-se um cristão implica uma decisão; antes de ser nossa,
porém, tem de ser uma decisão de Deus. Com isso não estamos negando o fato de
que nós “nos decidimos por Cristo”, e isso livremente; o que estamos afirmando
é que, se o fizemos, é só porque, antes disso, ele já havia “decidido por nós”.
Esta ênfase na decisão ou escolha soberana e graciosa de Deus é reforçada pelo
vocabulário com o qual ela está associada. Por um lado, ela é atribuída ao
“prazer” de Deus, a sua “vontade”, “plano” e “propósito”, e por outro lado, já
existia “antes da criação do mundo” ou “antes do princípio das eras”. C. J.
Vaughan resume esta questão nas seguintes palavras:
Cada um que se salva no final só pode
atribuir sua salvação, do primeiro ao último passo, ao favor e à ação de Deus.
O mérito humano tem de ser excluído: e isto só pode acontecer voltando às
origens do que foi feito e que se encontra muito além da obediência que
evidencia a salvação, ou mesmo da fé a que ela é atribuída; ou seja, um ato de
espontâneo favor da parte daquele Deus que antevê e pré-ordena desde a
eternidade todas as suas obras.
Este ensino não
pode se minimizado. Nem a Escritura nem a experiência nos autoriza faze-lo. Se
apelarmos para a Escritura, veremos que no decorrer de todo o Antigo Testamento
se reconhece ser Israel “a única nação na terra” a quem Deus decidiu “resgatar
para ser seu povo”, escolhido para ser sua “propriedade peculiar”; e em todo o
Novo Testamento se admite que os seres humanos são por natureza cegos, surdos e
mortos, de forma que sua conversão é impossível, a menos que Deus lhes dê
vista, audição e vida.
Nossa própria
experiência confirma isso. O Dr. J. I. Packer, em sua excelente obra: O Evangelismo e a Soberania de Deus
aponta que, mesmo que neguem isso, a verdade é que os cristãos crêem na
soberania de Deus na salvação. “Dois fatos demonstram isso”, ele escreve. “Em
primeiro lugar, o crente agradece a Deus pela sua conversão. Ora, por que o
crente age assim? Porque sabe em seu coração que Deus foi inteiramente
responsável por ela. O crente não se salvou a si mesmo; Deus o salvou. (…) Há
um segundo modo pelo qual o crente reconhece que Deus é soberano na salvação. O
crente ora pela conversão de outros... roga a Deus para que opere neles tudo
quanto for necessário para a salvação deles”. Assim os nossos agradecimentos e
a nossa intercessão provam que nós cremos na soberania divina. “Quando estamos
de pé podemos apresentar argumentos sobre a questão; mas, postados de joelhos,
todos concordamos implicitamente”.
Mesmo assim há
mistérios que permanecem. E, como criaturas caídas e finitas que somos, não nos
cabe o direito de exigir explicações ao nosso Criador, que é perfeito e
infinito. Não obstante, ele lançou luz sobre o nosso problema de tal maneira a
contradizer as principais objeções que são levantadas e a mostrar que a
predestinação gera conseqüências bem diferentes do que se costuma supor.
Vejamos cinco exemplos:
1. Dizem que a predestinação gera arrogância, uma vez que (alega-se) os
eleitos de Deus se gloriam de sua condição privilegiada. Mas o que acontece é
justamente o contrário: a predestinação exclui a arrogância, pois afinal, não
dá para entender como Deus pode se compadecer de pecadores indignos como eles!
Humilhados diante da cruz, eles só querem gastar o resto de suas vidas “para o
louvor da sua gloriosa graça” e passar a eternidade adorando o Cordeiro que foi
morto.
2. Dizem que a predestinação produz incerteza e que cria nas pessoas uma
ansiedade neurótica quanto a serem ou não predestinadas e salvas. Mas não é bem
assim. Quando se trata de incrédulos, eles nem se preocupam com a sua salvação
– até que, e a não ser que, o Espírito Santo os convença do pecado, como um
prelúdio para a sua conversão. Mas, se são crentes, mesmo que estejam passando
por um período de dúvida, eles sabem que no final a sua única certeza consiste
na eterna vontade predestinadora de Deus. Não há nada que proporcione mais
segurança e conforto do que isso. Como escreveu Lutero ao comentar o versículo
28, a predestinação “é uma coisa maravilhosamente doce para quem tem o
Espírito”.
3. Dizem que a predestinação leva à apatia. Afinal, se a salvação depende
inteiramente de Deus e não de nós, argumentam, então toda responsabilidade
humana diante de Deus perde a razão de ser. Uma vez mais, isso não é verdade. A
Escritura, ao enfatizar a soberania de Deus, deixa muito claro que isso não
diminui em nada a nossa responsabilidade. Pelo contrário, as duas estão lado a
lado em uma antinomia, que é uma aparente contradição entre duas verdades.
Diferentemente de um paradoxo, uma antinomia “não é deliberadamente produzida;
ela nos é imposta pelos próprios fatos... Nós não a inventamos e não
conseguimos explicá-la. Não há como nos livrar dela, a não ser que
falsifiquemos os próprios fatos que nos levaram a ela”. Um bom exemplo se
encontra no ensino de Jesus quando declarou que “ninguém pode vir a mim, se o
Pai... não o atrair” e que “vocês não querem vir a mim para terem vida”. Por
que as pessoas não vão a Jesus? Será porque não podem? Ou é porque não querem?
A única resposta compatível com o próprio ensino de Jesus é: “Pelas duas
razões, embora não consigamos conciliá-las”.
4. Dizem que a predestinação produz complacência e gera antinomianos.
Afinal, se Deus nos predestinou para a salvação eterna, por que não podemos
viver como nos agrada, sem restrições morais, e desafiar a lei divina? Paulo já
respondeu esta questão no capítulo 6. Aqueles que Deus escolheu e chamou, ele
os uniu com Cristo em sua morte e ressurreição. E agora, mortos para o pecado,
eles renasceram para viver para Deus. Paulo escreve também em outro lugar que
“Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e
irrepreensíveis em sua presença”. Ou melhor, ele nos predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho
(29).
5. Dizem que a predestinação deixa as pessoas bitoladas, pois os eleitos de
Deus passam a viver voltados apenas para si mesmos. Mas o que acontece é o
contrário. Deus chamou um único homem, Abraão, e sua família apenas, não para
que somente eles fossem abençoados, mas para que através deles todas as
famílias da terra pudessem ser abençoadas. Semelhantemente, a razão pela qual
Deus escolheu seu Servo, a figura simbólica de Isaías que vemos cumprida
parcialmente em Israel, mas especialmente em Cristo e em seu povo, não foi apenas
para glorificar Israel, mas para trazer luz e justiça às nações. Na verdade
estas promessas serviram de grande estímulo para Paulo (como deveriam ser
também para nós) quando ele, num ato de grande ousadia, decidiu ampliar sua
visão evangelística para alcançar os gentios. Assim, Deus fez de nós seu “povo
exclusivo”, não para nos tornarmos seus favoritos, mas para que fôssemos suas
testemunhas, “para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para
a sua maravilhosa luz”.
Portanto, a
doutrina da predestinação divina promove humildade, não arrogância; segurança e
não apreensão; responsabilidade e não apatia; santidade e não complacência; e
missão, não privilégio. Isso não significa que não existam problemas, mas é uma
indicação de que estes são mais intelectuais do que pastorais.
E o ponto que
Paulo quer enfatizar no versículo 29 é, com toda certeza, pastoral. Tem a ver
com dois propósitos práticos da predestinação de Deus. O primeiro é que nós
devemos ser conformes [viver de
conformidade com] à imagem de seu Filho.
Ou, dito da forma mais simples possível, o eterno propósito de Deus para seu
povo é que nos tornemos como Jesus. O processo de transformação começa aqui e
agora, em nosso caráter e conduta, por meio da obra do Espírito Santo, mas só
será completado e aperfeiçoado quando Cristo vier e nós o virmos, e quando
nossos corpos se tornarem como o corpo de sua glória. O segundo propósito da
predestinação de Deus é que, como resultado de nos tornarmos conformes à imagem de Cristo, ele passe
a ser o primogênito entre muitos irmãos,
desfrutando da comunhão da família como também da prerrogativa de ser o
primogênito.
Vamos agora à
terceira afirmação de Paulo: E aos que
predestinou, também chamou (30a). O chamado de Deus é a aplicação histórica
da sua predestinação eterna. Seu chamado chega às pessoas por meio do
evangelho; quando esse evangelho é anunciado a elas com poder e elas lhe
respondem com a obediência da fé, aí é que se sabe que Deus as escolheu. Assim
a evangelização (o anúncio do evangelho), longe de se tornar supérflua em
virtude da predestinação de Deus, é indispensável, pois é exatamente ela o meio
proporcionado por Deus para que o seu chamado chegue às pessoas e desperte a
sua fé. Fica, pois, evidente que aqui, quando Paulo fala do “chamado de Deus”,
não se trata daqueles apelos generalizados do evangelho, mas sim da convocação
divina que levanta os espiritualmente morto e lhes dá vida. Geralmente se chama
isso de chamado “efetivo” de Deus. Aqueles a quem Deus dirige esse chamado (30)
são os mesmos que “foram chamados de acordo com o seu propósito” (28).
Em quarto lugar, aos que chamou, também justificou (30b).
O chamado efetivo de Deus capacita aqueles que o ouvem a crer; e aqueles que
crêem são justificados pela fé. Como a justificação pela fé é um assunto
dominante nos capítulos anteriores desta carta de Paulo, não há necessidade de
se repetir o que já foi dito, a não ser talvez enfatizar que a justificação é
muito mais do que simples perdão ou absolvição, ou mesmo aceitação; é uma
declaração de que nós, pecadores, agora somos justos aos olhos de Deus, pois
ele nos conferiu o status de justos,
que na verdade trata-se da justiça do próprio Cristo. É “em Cristo”, em virtude
da nossa união com ele, que nós fomos justificados. Ele se fez pecado com o
nosso pecado, para que nós pudéssemos nos tornar justos com a sua justiça.
Quinto, aos que justificou, também glorificou
(30c). Já por diversas vezes Paulo usou o substantivo “glória”. Trata-se
essencialmente da glória de Deus, a manifestação do seu esplendor, a glória da
qual todos os pecadores estão destituídos (3:23), mas que se regozijam na
esperança de recobrar (5:2). Paulo promete também que se participarmos dos
sofrimentos de Cristo iremos participar também da sua glória (8:17), e que a
própria criação irá um dia experimentar a liberdade da glória dos filhos de
Deus (8:21). Agora ele usa o verbo: aos
que justificou, também glorificou. Nosso destino é receber corpos novos em
um mundo novo, e ambos serão transfigurados com a glória de Deus.
Muitos estudiosos
percebem que o processo da santificação, que ocorre entre a justificação e a
glorificação, foi omitido no versículo 30. No entanto, ele está implícito ali,
tanto na alusão a sermos conformados à imagem de Cristo, como na preliminar
necessária para nossa glorificação. Pois “santificação é glória iniciada;
glória é santificação consumada”. Além disso, tão certo é esse estágio final
que, embora ainda se encontre no futuro, Paulo o coloca no mesmo tempo aoristo,
como se fosse um fato passado, tal como tem usado para os outros quatro
estágios que já são passado. É o
assim chamado “passado profético”. James Denney escreve que “o tempo da última
palavra é impressionante. É a mais ousada antecipação de fé que o próprio Novo
Testamento contém”.
Vimos aqui,
portanto, as cinco afirmações incontestáveis apresentadas por Paulo. Deus é
retratado como alguém que se move irresistivelmente de um estágio ao outro; de
uma presciência e predestinação eternas, através de um chamado e uma
justificação históricos, para a glorificação final de seu povo em uma
eternidade futura. Faz-nos lembrar uma cadeia composta de cinco elos
inquebráveis.
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Stott, John, Romanos,
ABU Editora, São
Paulo, 2000, pp.300-306Via Calvinismo.com/ebooks
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